“É preciso então, para quem ousa ensinar, entender a significação crítica do ato de educar”, diz docente da UFCA sobre Paulo Freire e seu legado

Publicado em 15/10/2021. Atualizado em 31/10/2022 às 16h16

Foto: Nova Escola.Org. Arte: Dcom/UFCA

Entre os professores mais respeitados, estudados e citados do mundo inteiro, o educador Paulo Freire (1921-1997) coleciona ensinamentos sobre a prática docente e a Educação para a vida. No mês passado, o mundo celebrou o centenário do seu nascimento, relembrando todo o legado deixado por Freire para a formação humana. Criticado por alguns e admirado por muitos, é considerado um dos pensadores mais notáveis da Pedagogia mundial, influenciando o movimento conhecido como Pedagogia Crítica.

Neste dia 15 de outubro, que homenageia as professoras e os professores brasileiros, a equipe da Diretoria de Comunicação da Universidade Federal do Cariri (Dcom/UFCA) conversou com a professora Eunice Menezes, do Instituto de Formação de Educadores (IFE/UFCA), em Brejo Santo-CE, sobre o educador e filósofo Paulo Reglus Neves Freire – recifense nascido em 19 de setembro de 1921, cuja trajetória educadora lhe daria o justo título de Patrono da Educação Brasileira. Os títulos acumulados por Freire, no entanto, não vieram apenas do Brasil. Paulo já recebeu de universidades dos continentes americano e europeu cerca de quarenta títulos de Doutor Honoris Causa (ou “por causa da honra” em português). Esse termo em latim dá nome à honraria concedida por universidades a pessoas que se destacam em sua área de atuação.

Autor de diversos livros mundialmente conhecidos – como “Pedagogia do Oprimido” (1968) e “Medo e Ousadia – O Cotidiano do Professor” (1986) – o legado teórico do educador motivou a criação de cátedras em universidades que preservam a memória da Pedagogia de Paulo Freire. Esses grupos se organizam com o objetivo de realizar atividades de Pesquisa, Extensão, além de projetos que valorizem a Pedagogia Crítica, socializando o conhecimento sobre o pensamento freiriano.

Apesar da carreira inequívoca como educador, o valor de transformação social pela Educação tornou Paulo Freire alvo de perseguições durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985). No período, o professor foi perseguido por ensinar as classes trabalhadoras a ler e a escrever.

Neste Dia do(a) Professor(a), Eunice Menezes, professora da UFCA dos cursos de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática e de Pedagogia, fala sobre as contribuições freirianas para o conhecimento científico, para as universidades e para a Educação pública brasileira. Doutora em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Eunice leva muito dos ensinamentos de Freire para as suas pesquisas e práticas docente.

Dcom/UFCA – Por que Paulo Freire é considerado o patrono da educação brasileira? 

Professora Eunice Menezes, do IFE/UFCA, fala sobre as contribuições de Paulo Freire para a educação

Professora Eunice Menezes (IFE/UFCA) – O título de Patrono da Educação Brasileira, atribuído a Paulo Freire, foi sugerido, em 2011, pela então deputada Luiza Erundina (PSB-SP), autora da Lei Nº 12.612 (link para uma nova página), por sua vez, sancionada em 13 de abril de 2012, por Dilma Rousseff, presidente do Brasil, à ocasião. Entendo que Paulo Freire é digno desse reconhecimento pela sua intensa atuação política e social em favor da Educação pública brasileira, por toda a sua vida. O fato de ele ter sido vítima da ditadura militar também, em meu entendimento, endossa essa merecida homenagem. Como sabemos, a perseguição militar que Freire sofreu se deu pelo fato de ele se dedicar (e engajar vários educadores populares nisso) a ensinar as classes trabalhadoras, vítimas do analfabetismo e da negligência do poder público, a ler e a escrever. Importante lembrar que a concepção de leitura, na ótica de Paulo Freire, não se reduz a uma técnica, a um processo instrumental que leva à mera decodificação da língua escrita, mas, sim, como uma “chave” para a interpretação do mundo, com todas as suas contradições, e, mais ainda, como possibilidades de inserção nesse mundo. Ou seja: não estamos meramente no mundo, “soltos”, “descolados” dos fenômenos físicos e sociais que os compõem; mas devemos estar NO mundo, como seres históricos que somos, lutando por um tempo de possibilidades e não de determinismo, como nos diz o próprio Freire[1].

Paulo Freire consta como um dos autores mais estudados e citados em todo o mundo. Ele é referência em universidades, como Imperial College e Universidade de Oxford, no Reino Unido; Universidade de Bolonha, na Itália; Universidades de Columbia, Harvard, Michigan e Stanford, nos Estados Unidos; Universidade Católica de Louvain, Bélgica; Universidade de Genebra, Suíça; dentre outras. Paulo Freire também já recebeu cerca de quarenta títulos de Doutor Honoris Causa em universidades dos continentes americano e europeu. Tudo isso fortalece o reconhecimento do legado desse célebre cidadão do mundo. Portanto, mesmo que sua obra esteja sofrendo constantes ataques, seu nome, sua importância para a educação brasileira e mundial e sua luta por um mundo de “inéditos viáveis”[2] permanecerão naqueles que acreditam na possibilidade de mudanças sociais concretas e positivas.

Paulo Freire, em 1990, na reunião da coordenação do Primeiro Congresso de Alfabetizandos da cidade de São Paulo do Mova-SP. Foto: Memorial Virtual Paulo Freire (acervo.paulofreire.org)

Dcom/UFCA – Pensando no curso de Pedagogia da UFCA, quais são as influências de Paulo Freire que a senhora pode citar (conceitos, abordagens temáticas, forma de conduzir as aulas etc.)?

Professora Eunice Menezes (IFE/UFCA) – Os pressupostos de Paulo Freire perpassam o projeto pedagógico do curso de Pedagogia da UFCA em vários componentes curriculares, como Etnicidade, Pluralidade e Cultura Afrodescendente; Arte, Cultura e Educação; Didática Geral; Docência de História e Geografia nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; Educação de Jovens e Adultos (EJA); Gestão Escolar e Fundamentos de Educomunicação. Diversas categorias freirianas são abordadas, buscando uma práxis docente humanizada e humanizadora, sensível e conscientizadora da função social da universidade e da escola pública, e nisso dialogamos bastante como os/as discentes sobre o papel social do professor e da professora, na constituição de relações mais conscientes (com a natureza, com as pessoas, com as instituições). Longe das ideias equivocadas sobre Paulo Freire que foram e estão sendo veiculadas nas mídias sociais, por meio das tão prejudiciais fake news, as concepções teóricas de Freire nos são âncora e, junto a outros referenciais basilares para a formação de futuros/as professores/as, nos têm ajudado a esperançar, ou seja, a não perder a esperança na possibilidade de transformação social, mobilizada por nós, seres humanos, via educação pública, pesquisa, ciência e cultura.

Dcom/UFCA – Pensando na UFCA de maneira geral e até em outras universidades brasileiras, existem outras influências do pensamento de Paulo Freire na forma de conduzir o Ensino Superior público no Brasil?

Professora Eunice Menezes (IFE/UFCA) – Como já dito, o pensamento de Paulo Freire adentrou e se manteve firme em várias universidades, tanto nacionalmente, como no exterior. No Brasil diversas instituições lutam pela preservação e difusão da pedagogia de Paulo Freire, mantendo uma cátedra em homenagem a este ilustre educador. Posso citar, por exemplo, a cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); a da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo; a cátedra da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e a da Universidade Católica de Santos (Unisantos). Essas cátedras traduzem o reconhecimento da comunidade acadêmica à contribuição social, política, científica e pedagógica de Freire para a humanidade e a educação, consistindo em espaços para o desenvolvimento de pesquisas e estudos, além de serem ambiências de reflexão e diálogos de saberes e interlocução de projetos institucionais sobre a obra desse grande educador e suas implicações teórico-práticas, tanto na educação básica, quanto no ensino superior.

Paulo Freire, em 1996, com professoras e professores da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Foto: Memorial Virtual Paulo Freire (acervo.paulofreire.org)

Dcom/UFCA – Que fundamentos de Paulo Freire são importantes para um educador ter sempre em mente e levar para a sua prática? 

Professora Eunice Menezes (IFE/UFCA) – Considero que as principais contribuições de Paulo Freire, necessárias para todo professor e todo estudante universitário, sobretudo de classes populares, diz respeito à sua abordagem não autoritária, que nos instiga a superar a curiosidade ingênua, isto é, a submeter o senso comum à curiosidade epistemológica, que é a capacidade de examinar e reexaminar as situações e as contradições da vida, via reflexão crítica. A curiosidade epistemológica, segundo Freire, é aquela que nos leva a entender que a desigualdade social, a marginalização, a fome e o desemprego não são um dado, um fato ou fardo, dos quais os pobres são vítimas; mas, sim, que somos programados (por um sistema opressor e mantenedor do status quo) a aceitar a “herança” da pobreza, do analfabetismo, da precarização do trabalho, da exploração da vida humana. Todas essas e outras contribuições do grande educador Paulo Freire foram/são comunicadas pela pedagogia dialógica que ele fundou e que pode ajudar o estudante (e a seu pai, um lavrador; sua mãe, uma operária de uma fábrica; seu vizinho, que não sabe em quem votará nas próximas eleições) a entender o lugar que eles ocupam e que podem ocupar na sociedade, a partir de sua própria história.

Outro grande contributo da obra freiriana, principalmente na atualidade, é a motivação à rigorosidade metódica[3], outro conceito de Paulo Freire que conclama os professores comprometidos com a educação como prática libertadora a serem investigativos, inquietos, criativos, humildes e persistentes. Por exemplo, um problema que tem atingido recentemente alguns brasileiros (infelizmente também professores) é a veiculação de matérias enganosas, geralmente por meio das perigosas fake news, que distorcem as ideias de Paulo Freire e o acusam irresponsavelmente de contribuir para o fracasso da educação nacional. Ora, como dar crédito a uma posição sobre Paulo Freire que não se fundamenta em um exame criterioso de sua vida e obra? Muitas vezes, quem critica a pedagogia freiriana sequer leu um de seus livros ou mesmo parte dele. Outros conteúdos enganosos também têm chegado aos lares brasileiros, por exemplo, notícias falsas sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19 e sobre possíveis medicações preventivas da doença. É preciso então, para quem ousa ensinar[4], entender a significação crítica do ato de educar. Mesmo que isso nos leve a transitar, na prática docente, entre o medo e a ousadia[5].

Paulo Freire. Foto: Nova Escola.org

Por fim, agradeço a oportunidade de poder falar prazerosamente sobre alguém que tanto me ensina sobre vida, natureza, sociedade e Educação, e encerrar citando mais um dos apelos de Paulo Freire à nossa mobilização conjunta por mudanças necessárias e possíveis nesse nosso planeta: “Não há possibilidade de pensarmos o amanhã, mais próximo ou mais remoto, sem que nos achemos em processo de permanente ‘emersão’ do hoje, molhados do tempo que vivemos, tocados por seus desafios, instigados por seus problemas […]” [6]

Serviço

Instituto de Formação de Educadores (IFE/UFCA)

Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática
cienciasematematica.ife@ufca.edu.br

Curso de Pedagogia
pedagogia.ife@ufca.edu.br



Referências

[1] Para entender melhor os conceitos de ser no suporte e inserção no mundo, ver FREIRE, Paulo. À sombra dessa mangueira. Ed. 10. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

[2] A categoria “inédito viável” está diretamente associada a outros construtos freirianos, como esperança, utopia e transformação social. Quanto a esses conceitos, ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

[3] Para melhor entender esse conceito, ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

[4] Aqui faço alusão a FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’Água, 1997.

[5] E aqui faço mais um “convite” à leitura de Freire, nessa obra em parceria com o professor norte-americano Ira Shor: FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 133.