“A gente fica na angústia de quando vai chegar esse pico que ainda não estourou aqui”, diz infectologista sobre a situação do Cariri

Publicado em 08/05/2020. Atualizado em 08/11/2022 às 17h02

Foto: Wikimedia Commons

Depois de quase dois meses de surgimento do primeiro caso no Ceará, em meados de março de 2020, os números do novo coronavírus (Covid-19) permanecem em ascensão. Com atuação no Hospital Regional do Cariri, na supervisão do Programa Mais Médicos pela Universidade Federal do Cariri (UFCA) e na rede privada, o médico infectologista Pablo Pita, avalia, na prática, os quase dois meses da chegada da pandemia no Estado e a situação da região do Cariri. A equipe da Diretoria de Comunicação da UFCA também conversou com o médico sobre as formas de contágio e a importância de manter as medidas de prevenção para evitar aumento no número de casos. Pablo Pita abordou ainda os cuidados que a população local deve ter com outras enfermidades que costumam ocorrer nessa época do ano e evoluir para casos graves, como a dengue e algumas infecções respiratórias.

Até a manhã desta sexta-feira, dia 8 de maio de 2020, de acordo com o Painel de Monitoramento da Covid-19 da UFCA, o Ceará registrou 14.394 casos, com 103 na região do Cariri. Já o número de mortes é de 938, com 7 óbitos no Cariri. Acompanhe abaixo a entrevista:

Retrato do médico infectologista Pablo Pita
Médico infectologista Pablo Pita. Foto: Arquivo pessoal

Dcom/UFCAQueria que o senhor começasse falando sobre a situação atual que estamos vivendo em quase dois meses que o primeiro caso surgiu no Ceará. De lá pra cá, o número só tem aumentado, principalmente em Fortaleza. Como você avalia esses quase dois meses aqui na região e qual vai ser a tendência daqui pro final de maio?

Pablo Pita – Estamos entrando no sexto mês de epidemia mundial. Aqui no Ceará estamos entrando em quase dois meses do primeiro caso que foi confirmando. O que a gente vivencia hoje é o que a gente esperava. Os casos de Covid-19 chegariam na região, essa era a única certeza que a gente tinha. Existem muitas variáveis, a gente tem mais perguntas que respostas em relação à Covid-19, não vou conseguir te responder tudo. Uma explicação plausível do porquê Fortaleza tem tantos casos a mais comparado ao restante do Estado, por exemplo, eu não vou saber te dizer. Talvez o número de aglomerados populacionais. Talvez as medidas de isolamento não tenham sido respeitadas e possa ter contribuído em algum momento para a transmissão. A gente também tem que pensar em algo que não é muito falado que é a pessoa doente que não quer dizer que está doente para não se afastar do trabalho, para não ser discriminada e acaba sendo uma fonte de transmissão.

Um segundo ponto que você falou foi sobre as perspectivas. Modelos estatísticos, modelos matemáticos podem dar uma noção? Podem. Mas a gente consegue muito mais interpretar com um modelo estatístico o que aconteceu para trás do que prever algo que vem para frente. Cada ação tomada, cada ponto de decisão de alguma ação, gera uma mudança na estrutura dos cálculos e muda totalmente. Se a gente comparar com a China, que fez um isolamento intensivo e teve uma transmissão sustentada por aproximadamente dois ou três meses, talvez a gente esteja chegando no nosso pico de casos. Ou talvez não. Talvez a gente tenha tido um controle de disseminação precoce. Talvez nosso pico epidêmico ainda vá ocorrer. Ainda há uma possibilidade de ter um número de casos ainda maior.

Dcom/UFCAA gente começou falando da situação de Fortaleza, mas eu queria que o senhor fizesse uma avaliação mais focada na região do Cariri. Hoje, o que vocês têm conversado entre os médicos, como vocês avaliam? O número de casos está estabilizado ou tende a aumentar?

Pablo Pita – A gente tem uma calmaria aterrorizadora. A gente vê o número de casos baixos. Juazeiro não é a capital do estado, mas é uma cidade polo. A gente tem um aeroporto regional. A gente tem um alto fluxo de pessoas. Tudo bem que a gente não teve a romaria no Cariri [o médico refere-se à romaria em comemoração ao aniversário de Padre Cícero, realizada em março de cada ano em Juazeiro do Norte, e que foi cancelada em 2020 por causa do coronavírus], que já diminuiu muito o trânsito populacional. Acho que foi uma das medidas que deve ter contribuído bastante para auxiliar, porque realmente a gente diminui bastante o trânsito de pessoas. É difícil dizer. Realmente é muito discrepante o que a gente está vivendo na capital e o que a gente vê aqui, considerando que é uma região “capital”. A gente é praticamente um polo de indústria, de comércio e de fluxo de pessoas aqui.

Eu não consigo visualizar tantas pessoas adoecendo na minha prática privada e, em contato com os colegas que atuam no SUS, na atenção primária. Até o momento, poucas estão evoluindo para quadros graves, o que é bom. A gente fica naquela que é incerto dizer que nosso pico passou. Não é correto a gente falar isso. E, ao mesmo tempo, a gente fica na angústia de quando vai chegar esse pico que ainda não estourou aqui.

A gente enfrenta uma dificuldade enorme no diagnóstico da Covid-19, porque o exame precisa ser feito no tempo correto para uma interpretação correta. Se passar de um tempo a gente tem um exame negativo, com um paciente possivelmente positivo, com um quadro clínico muito sugestivo. Isso atrapalha muito, porque a gente fica sem ter a capacidade de confirmar o diagnóstico com exatidão e acaba que o paciente fica suspeito, e a gente não tem como retirar essa suspeita até que ele melhore e a gente ateste que ele se curou. É bem difícil. A situação da região está calma, mas a gente tá naquela angústia de chegar o pior tão longo.

Dcom/UFCAAqui no Cariri qual tem sido a média de demora pra receber o teste?

Na rede privada, em torno de seis dias. Na rede pública, em torno de 10. Se você considerar que a pessoa que coleta o swab [exame que coleta secreções do trato respiratório], em 14 dias está fora do isolamento, 10 dias é praticamente o isolamento completo que ela passa. Isso realmente tem dificultado um pouco as análises. O que eu senti na última semana foi uma discreta melhora nessa velocidade. Acho que o processamento está melhorando um pouco mais e, aí assim, quanto mais rápido os exames saírem, melhor, porque a gente consegue direcionar os pacientes, retirar das suspeitas, colocar em enfermarias comuns e liberar mais vagas para os possíveis suspeitos de Covid.

Dcom/UFCAA gente sabe que tem esse problema de subnotificação dos números no Brasil todo, não é um problema só da região. Apesar dessa subnotificação, na prática, os médicos daqui não percebem ainda uma superlotação no hospital?

Pablo Pita – Eu não tenho como te dar números exatos, mas posso te falar da ocupação. A gente tem unidades abrindo. Quando você abre uma unidade, você tem dez leitos disponíveis, mas são leitos que rapidamente são ocupados. Rapidamente as unidades se enchem. Não há ociosidade do leito. Tem dia que você olha e está tranquilo e tem dia que lota. Vou te dar um exemplo que aconteceu comigo. Eu estava de plantão em uma unidade em um determinado hospital, e a gente estava apenas com dois pacientes internados. Passou o plantão inteiro com dois pacientes. Meia hora antes do final, quatro pacientes para admitir. Todos suspeitos. Uma unidade que estava com 20% chegou em menos de meia hora com quase 60% de ocupação. O que tem hoje já pode ser totalmente diferente amanhã. É muito volátil. No regional leito de UTI era raro acontecer de estar livre. Os pacientes politraumatizados, cardiopatas, pneumopatas, que já vão à UTI continuam indo. As pessoas não pararam de adoecer, continuam adoecendo.

Dcom/UFCA Nessa época do ano tem um outro problema que é a dengue. Tem chegado muitos casos de dengue?

Pablo Pita – Muitos, muitos casos. Eu acho que eu estou acompanhando pelo menos uns 25 casos de dengue nos últimos dois meses. E olhe que estou falando do serviço privado, porque no serviço público esses casos não chegam para mim. E a gente fica naquele cenário para confundir ainda mais. A dengue dá febre, dá cefaleia, dá mal estar e as pessoas no pânico e no medo da Covid acabam pensando ser Covid. Casos graves de dengue podem dar desconforto respiratório. Tem febre, tem desconforto respiratório é Covid. E, às vezes, pode ser dengue. Está muito difícil a gente trabalhar isso na prática, conseguir fazer essa diferenciação. A gente tem que tomar muito cuidado nesse cenário.

Imagem de um mosquito Aedes aegypti, vetor da dengue
Também é preciso ter cuidado com a dengue nesta época do ano. Foto: Divulgação Fiocruz

Dcom/UFCAA gente tem uma pandemia, mas essas doenças continuam acontecendo. O que a população pode fazer para se prevenir?

Pablo Pita – Por sorte, os cuidados implementados para Covid-19 vão ajudar muito na grande maioria das doenças respiratórias. A etiqueta respiratória, o uso da máscara, a higienização das mãos com frequência, evitar aglomerações, evitar o trânsito, isso ajuda muito nos vírus respiratórios da influenza, do rinovírus, vírus sincicial respiratório. Algumas doenças, como a “virose da mosca”, que era associada à questão da higienização dos alimentos. Tudo isso acaba entrando na conta da Covid, e a população acaba se protegendo paralelamente a isso.

E, para dengue, a gente tem que lembrar que, se eu já estou em casa de quarentena, nada mais justo que a gente vá no jardim verificar se tem algum foco de dengue. Usar repelente, cobrir o corpo, exatamente para evitar a propagação do mosquito e, consequentemente, a da dengue.

Dcom/UFCA Voltando à Covid, pelo que a gente tem falado na nossa conversa, aqui no Cariri ainda não teve a explosão de casos. Em relação a medidas de isolamento, uso de máscaras, bloqueio de entrada nas cidades, você considera que ajuda, que é importante? Mesmo que a gente ainda esteja conseguindo atender os casos, a população precisa aderir mesmo a todas essas medidas?

Pablo Pita – A Covid tem três formas de transmissão. É transmitida pelo ar, através das gotículas, durante a fala, o espirro e a tosse. Essas gotículas podem entrar em contato com a pessoa diretamente no olho, na boca, no nariz. A outra forma é por aerossol. Você precisa de um procedimento que gere esse aerossol, mas é basicamente em hospital. E pelo contato, que é quando essas secreções conseguem se espalhar por todo o ambiente. O vírus da Covid, o Sars-CoV-2, tem capacidade de permanecer viável no ambiente por muito tempo. Alguns estudos mostram que ele pode ficar vivo até três dias em uma superfície que não foi higienizada. Você saiu e foi comprar um pacote de arroz. Se uma pessoa com Covid tossiu na mão e eventualmente bagunçou a prateleira do arroz para escolher o melhor saco, ela pode ter deixado o vírus naquela superfície que eventualmente uma pessoa no dia seguinte pode ir lá, pegar e levar para casa.

A partir do momento que a gente diminui o volume de pessoas circulando para atividades não essenciais, diminui a possibilidade de uma possível pessoa doente estar transmitindo para outra pessoa. Esse é um ponto importante. Se eu quebro a cadeia, impeço a cadeia epidemiológica da infecção de não ocorrer, vai surtir um impacto. Quanto vai impactar, a gente só vai saber quando a pandemia passar, porque a gente vai revisitar o passado e vai ver. A gente só vai conseguir julgar essas informações no futuro. Esse é o problema da epidemiologia, porque a epidemiologia só consegue avaliar dados para trás, que já aconteceram. Eu não consigo fazer um julgamento do que vai acontecer na frente. É uma aposta, uma aposta pautada na forma mais primitiva de evitar a infecção, que é você evitar o contato. Qual a forma mais moderna de evitar infecção? É uma vacina, é um medicamento. Você continua no seu trabalho, vai para onde você quiser, entra em contato com o vírus e não tem problema. A forma mais primitiva, porém eficaz, é você não se contaminar. E você não se contamina, quando não sai de casa. Mas a gente entende que, às vezes, sair de casa ainda é uma necessidade. Julgar as ações de fechamento de fronteira e de distanciamento social a gente só vai saber num futuro próximo.

A forma mais primitiva, porém eficaz, é você não se contaminar. E você não se contamina, quando não sai de casa.

Pablo Pita, infectologista

Dcom/UFCA Quem tiver sentindo algum sintoma qual o momento de sair de casa pra procurar atendimento numa unidade básica ou num hospital e qual o momento de permanecer em casa, se cuidando em casa mesmo? Falando da região do Cariri, de como funcionam as estruturas de saúde daqui.

Pablo Pita – Vamos falar do sistema público A maioria dos municípios estabeleceu um fluxograma, em que a atenção primária, o posto de saúde, tem papel fundamental nesse rastreio. Em algumas cidades, como Juazeiro do Norte e Crato, por exemplo, retiraram essa obrigatoriedade do postinho de saúde e criaram unidades sentinelas. Ou seja, são estruturas de saúde, com atendimento prolongado (7h da manhã às 10h da noite), com um profissional durante todo o período de trabalho e uma estrutura mínima para atender, reconhecer e indicar a melhor solução.

O que eu poderia sugerir? Hoje o binômio maior em relação à Covid é febre mais sintoma respiratório. Se você apresenta o binômio febre com o sintoma respiratório, que pode ser tosse, coriza, pode ser dificuldade para respirar ou dor de garganta, você precisa estar atento à possibilidade da Covid. Está na dúvida, angustiado, preocupado sobre a Covid, se vai ter forma grave, então vai para uma unidade sentinela. Elas estão aptas a atender pacientes com síndromes gripais. A unidade sentinela de Juazeiro é perto do Vapt-Vupt [Avenida do Agricultor, s/n] e a do Crato é na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) [Avenida José Horácio Pequeno, s/n].

Não estando preocupada, não estando angustiada e apresentando somente o quadro de síndrome gripal, a ideia é que permaneça em casa, se isole da família, mantenha as medidas já exaustivamente colocadas como recomendações para os isolamentos e assim vai passar os próximos 14 dias. Melhorou os sintomas, 14 dias de isolamento e não está sentindo mais nada, então já resolveu o problema. A doença não cursa mais do que 14 dias, a não ser quando tem uma forma grave. Entretanto, se você apresenta o binômio febre mais dor de garganta, coriza, espirros, tosse e for do grupo de risco, é interessante que, mesmo com sintomas leves, você procure uma unidade de saúde, porque você precisa estar visível ao sistema de saúde. Quando você vai ao sistema de saúde, que percebe que você é um paciente de risco [idosos e pessoas com outros problemas de saúde (diabetes, pressão alta e problemas de coração, por exemplo), gestantes e puérperas], ele acaba criando uma rede de monitorização. Seja por teleatendimento, seja por visita, seja por mandar um telefone ou Whatsapp para saber se você está evoluindo bem. Isso é muito importante, principalmente para a população de risco, que é aquela que mais vai sofrer com Covid-19, que vai ter manifestações mais graves.

E qualquer pessoa que apresente desconforto respiratório, dificuldade pra respirar, arroxeamento dos dedos, perda de consciência, fique tonto ou algum sintoma que julgue ser mais grave vá para a unidade sentinela na hora, porque você vai ser avaliado, vai ser considerado se vai precisar internar em uma enfermaria, que é um atendimento mais leve, com suporte de oxigênio e algumas medicações, ou se vai precisar de um leito de UTI, é onde vai entrar a recomendação do Hospital Regional do Cariri. No Crato tem leito de UTI no hospital São Francisco. Em Barbalha, tem no hospital Santo Antônio e no hospital São Vicente. Se não for possível nesses hospitais, o Regional acaba recebendo.

Dcom/UFCA Já caminhando para o final, o senhor que está na linha de frente, trabalhando no atendimento particular e no hospital regional, e vê mais de perto a situação e conversa com outras pessoas de outros lugares, que mensagem o senhor deixa para a população, do que a população pode fazer e como pode se comportar nesse momento difícil para todos?

Pablo Pita – Eu acho que essa pandemia trouxe muitas reflexões pra gente. Se for falar em relação à saúde, a gente percebe que precisa se cuidar mais. A gente precisa ter noção do autocuidado. E também uma responsabilidade social para com o próximo. O raciocínio de pensar de como eu posso proteger o meu vizinho, como eu posso atuar para o meu vizinho não se contaminar, já é uma discussão muito antiga. A gente faz com a dengue desde sempre. É o cuidado com o meu jardim para não me contaminar e não contaminar o meu vizinho.

É o momento da gente ter paciência. A gente precisa lidar com essa pandemia. Virão outras pandemias aí. A história demonstra isso. Talvez a doença não se erradique e a gente ainda fique com essa doença por algum período e precise se adaptar e se remodelar. A gente precisa se renovar nos conceitos, renovar as nossas relações interpessoais, talvez uma forma de menos proximidade com mais afetividade e que a gente esteja pensando sempre no todo. O nosso objetivo é que o todo melhore. Eu não posso pensar só em mim, não é porque eu sou jovem, que eu não sou fator de risco, que eu não posso pegar a Covid-19. Eu tenho primo, eu tenho parente, eu tenho irmão, que pode ter fator de risco e pode adoecer. Ele pode evoluir bem, mas pode evoluir mal. Quando os números da Covid forem um nome conhecido da gente, talvez a gente se importe um pouco mais.

Quando os números da Covid forem um nome conhecido da gente, talvez a gente se importe um pouco mais.

Pablo Pita, infectologista