“É importante demais meninas se reconhecerem em grandes cientistas”. Leia artigo de opinião da vice-reitora da UFCA no dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência

Publicado em 11/02/2022. Atualizado em 31/10/2022 às 15h18

Professora Laura Hévila, durante pesquisa para o doutorado, em 2016. Foto: arquivo pessoal

Segundo estudos do Fórum Econômico Mundial (link para uma nova página), a crise sanitária mundial atrasou em mais de uma geração o tempo necessário para alcançar a paridade entre mulheres e homens. Estima-se que, com a pandemia de covid-19, a igualdade de gênero só será atingida em mais de cem anos.

O Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado em 11 de fevereiro, foi instituído em 2015 pela Assembleia das Nações Unidas e passou a integrar o calendário de eventos da UFCA em 2019. Sob a liderança da Unesco e da ONU Mulheres (link para uma nova página), o evento acontece em diversos países, com atividades que visam dar visibilidade ao papel e às contribuições fundamentais das mulheres nas áreas de Pesquisa Científica e Tecnológica.

Um levantamento do Movimento Parent in Science (link para uma nova página), realizado durante o distanciamento social estabelecido para a contenção da covid-19, mostrou que a pandemia está afetando a produtividade acadêmica brasileira, mas que esse impacto reflete mais sobre as mulheres. Uma das principais conclusões desse levantamento foi a de que a produtividade acadêmica de homens, especialmente os sem filhos, foi a menos afetada pela pandemia.

Segundo o estudo do Parent in Science – que avaliou os efeitos de raça, gênero e parentalidade na produtividade acadêmica durante o distanciamento social no país –, apenas 4,1% das mulheres com filhos estão conseguindo trabalhar de forma remota, número distante dos 18,4% registrados para mulheres sem filhos.

Inegalvemente, há uma sub-representação feminina na Ciência, uma vez que, apesar de os números de mulheres com bolsas de iniciação científica e também as com mestrado e com doutorado serem superiores ao dos homens, as mulheres representam apenas 33% do total de bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq (link para uma nova página). Nas áreas de Ciências Exatas, Engenharias e Computação, a desigualdade é maior. Os homens assinam 75% dos artigos nas áreas de Computação e de Matemática. Esse resultado se deve a diversos obstáculos para acesso, permanência e ascensão de mulheres nas carreiras científicas e tecnológicas – em especial nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática – conhecidas pela sigla STEM em inglês (Science, Technology, Engineering and Mathematics).

Diante desse cenário que impacta a Ciência, precisamos fortalecer a discussão sobre gênero, raça e maternidade como fatores que afetam as condições para a produção científica de qualidade. Além disso, a necessidade de orientar políticas públicas de auxílio às mães na área acadêmica e de estabelecer ações afirmativas em prol da diversidade e inclusão tornou-se ainda mais evidente durante o período de pandemia.

Em 2021, o filme Radioactive, que narra a vida de Marie Curie, ‘mãe’ da radiação, ganhou destaque mundial. A obra mostra as dificuldades e a genialidade da trajetória de uma das cientistas mais importantes da história. Por ser mulher e cientista em pleno século XIX e início do século XX, Curie teve que enfrentar diversos obstáculos para conseguir manter sua Pesquisa ao longo da vida. Proibida de estudar no seu país de origem (Polônia) por ser mulher, foi obrigada a se mudar para a França, aos 24 anos, para conseguir trabalhar como cientista. Curie viveu nesta nossa sociedade que exige, todos os dias, que uma mulher tenha um comportamento determinado, tanto na vida pessoal quanto na profissional.

Outro problema para as cientistas mães e também docentes é conseguiram cumprir prazos relacionados a solicitações de fomento, bolsas e submissão. Nos levantamentos do grupo Parent in Science, a porcentagem de mulheres sem filhos que conseguiram cumprir esses prazos é de 79,9%. O número de mulheres com filhos que conseguiram submeter artigos científicos conforme o planejado também é mais baixo do que o de mulheres sem filhos. Apenas 47,4% das docentes mães submeteram artigos, enquanto, para as mulheres sem filhos, esse número foi de 56,4%.

Esse número escancara a desigualdade entre homens e mulheres na Ciência, mas, ainda assim, as contribuições das mulheres para a Ciência são inúmeras. As mulheres cientistas, mesmo com filhos, desenvolvem pesquisas brilhantes e contribuem significativamente para o desenvolvimento da Pesquisa e da Ciência no mundo. É importante demais meninas se reconhecerem em grandes cientistas, pois isso estimula ainda mais jovens meninas pela curiosidade e estudo em áreas científicas.

Já atuei como docente no Ensino Básico e me recordo de um exercício que fazia com os alunos. Consistia em solicitar que mentalizassem como é a imagem de um(a) cientista. Infelizmente, poucas crianças descreviam mulheres.

Comecei minha carreira como professora universitária aos 26 anos e nunca me intimidei com as críticas que recebi e recebo. Já experimentei inúmeros momentos em que precisei me impor com determinação. A área científica é bastante competitiva, mas as maiores dificuldades que encontramos, como cientistas, independentemente de gênero, são a escassez de verbas para o desenvolvimento de projetos.

As mulheres precisam ser reconhecidas e respeitadas como cientistas pelo seu currículo. Só assim, conseguiremos avançar em Ciência de qualidade. Para reconhecer um/a cientista, deve-se olhar para o mérito e para a qualidade em produção científica – não para o gênero.

A política científica também é fruto de inúmeras decisões tomadas majoritariamente por homens e essa também é uma crítica comum dos grupos que têm defendido a paridade na Ciência. É bem verdade que O CNPq, desde 2005, tem atuado para maior participação das mulheres nas carreiras científicas e tecnológicas. O órgão tem investido em iniciativas como ações de divulgação científica, editais específicos para meninas em Exatas, Engenharias e Computação, prorrogações de bolsas para mães bolsistas, inclusão da data de nascimento dos filhos no currículo Lattes (link para uma nova página), dentre outras ações que já eram lutas diárias das cientistas por visibilidade e reconhecimento.

Um desafio ainda mais preocupante é a percepção de assédio moral e sexual relativo a gênero. Vários trabalhos mostram que mais de 50% das docentes têm sido assediadas de forma moral, ao passo que 30% de seus colegas homens sofreram também esse tipo de violência. Segundo pesquisas da Global Gender Gap Report 2021 (link para uma nova página), no que se refere ao assédio sexual, 14% das docentes têm vivenciado essa experiência, enquanto apenas 5,9% dos docentes homens têm sofrido esse tipo de perseguição. O assediador era homem em 85% dos casos de assédio moral e em 90% das ocorrências de assédio sexual. Também conforme esse relatório, a Namíbia avança no ranking mundial de menor diferença de gênero e empoderamento político devido ao substancial aumento de mulheres em cargo ministeriais (de 20% a 39%) no país. Esse progresso associado ao fato de 44,2% das parlamentares serem mulheres colocou a Namíbia entre os 19 países do mundo com menor diferença de gênero e empoderamento político.

Essas realidades exitosas em outros países amenizam um pouco a situação de desigualdade de gênero em todas as áreas, em especial na Ciência. Nesta realidade de pandemia, será fundamental medidas compensatórias que atuem para reduzir cada vez mais esses abismos entre as carreiras femininas. É fundamental agirmos imediatamente. Não há espaço para retrocessos na luta contínua por tornar a Ciência diversa. Não podemos permitir especialmente que a pandemia de covid-19 atue como mais um fator para aumentar o desequilíbrio de gênero, raça e parentalidade na academia.

Laura Hévila Inocêncio Leite é vice-reitora da UFCA, titular da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PRPI/UFCA), pesquisadora e mãe.